Cinco poemas de Fiama Hasse Pais Brandão
Da voz das coisas
Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.
Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.
Nada tão silencioso como o tempo
Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até nas íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.
Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu
correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.
Mas não sentimos dentro do coração que
somos
filhos diletos do tempo e que, se hoje
amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.
Sumário Lírico
Nesta janela de ver passar os barcos em
vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de
cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não
minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das
palavras.
Reescrevo-me a mim própria sem outra
alternativa.
E recordo-me dos outros de fora da
vidraça, mudos
mas autores cada um no seu frasear,
generosos
quando me reconheciam em muitos anos de
vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues
vozes
caladas para sempre nos livros em que as
lera.
Em tantas vidraças que espelharam caras,
olhos
de cada olhar de imagens próprias de cada
um.
Estava no longínquo fundo o mar redito, o
sol,
os barcos na Barra, que também em vidros
estavam.
Passa tu, golfinho, piloto cego, depois
cadáver,
que talvez me conduzisse entre os barcos
da Barra,
quando o dorso de prata e o gume passavam
nas horas visuais das manhãs de Junho e
Julho minhas,
de par em par o olhar aberto ao ar do sol
do sal.
Imagens que sempre ficais nestas vidraças,
emprestai vosso vidro e revérbero à luz
do farol extinto, em outras vidas que
antes
narravam que eu era já nascida,
quando vos vi, farol, e vos guardei,
imagens.
A cor de prata dos vultos é hoje negra,
manchas
com a noite embebida, tantas vezes
co-substancial.
É assim que a vidraça anoitece diante dos
olhos,
diariamente somando anos, minutos
indivisos.
Mas, cisco no vidro, pela lei da
perspectiva, ponto.
Do outono II
Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.
Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num
país.
Uma voz
Uma voz dizia que nos vinha a chuva
que mata, outra que abençoava a terra.
Uma palavra era sobre a água úbere,
outra sobre os lodos, limos e as
regueiras.
Uma voz queria beber uma sede áspera,
outra clamava fogo, terra e água.
Sobre a autora:
Fiama Hasse Pais Brandão nasceu (1938 – 2007) em Lisboa, foi dramaturga, tradutora e poeta. Formou-se em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa e seu primeiro livro foi Morfismos. Além disso, destaca-se, dentre outros títulos, Novas visões do passado (1974), Área branca (1978), e Três rostos (1989).
Olá,
ResponderExcluirGostei dos versos, reflexões para pensar bastante.
lindos poemas. gostei da outono II, de algum jeito ela me envolveu mas não sei ao certo definir isso.
ResponderExcluirNunca ouvi falar da poeta portuguesa, mas sempre é bom ter tempo para essas andanças nos blogs conhecidos, pois gratas surpresas temos. Adorei ler e interiorizar a mensagem de Fiama.
ResponderExcluirAté mais, e um grande abraço.
Estas poesias com este lirismo atualmente é dificil de encontrar, gostei do outono II é interessante como o texto pode se assemelhar a sensação de seca do autor descreve.
ResponderExcluirOie!
ResponderExcluirLindos poemas! Ainda não conhecia a escrita dela, mas achei os poemas que você trouxe intensos e tocantes. Adorei!
Beijos