Valeu, Tati!
Prometi à minha família “sem
aglomerações”, e ali estava eu quebrando a minha palavra. Mas como não ir ao
velório do Tati? É irônico porque, após meses, pela primeira vez eu me reunia
com outras pessoas, e logo no lugar que tanto tentamos evitar com esse confinamento:
a capela municipal. Mas era do Tati! Como não ir?
Acho que, justamente por ser dele, é que
tantas regras nos tempos de pandemia perdem sentido. Não conheci ninguém mais
comprometido e disciplinado. Foi Tati o primeiro do morro, talvez da cidade, a
utilizar máscaras. Em campanha na faculdade, conseguiu dezenas de itens de
proteção para quem não podia comprar. Era um menino exemplar, de bom coração,
proativo. Em técnico de enfermagem se formaria este ano.
Mas daí que falo: de que valeram as
regras? Tati se foi e nenhuma verdade é maior do que esta.
As campanhas de alimentos que organizou,
de produtos de higiene, de tudo. E não dou crédito apenas a ele, porque o nosso
coletivo ajudou, mas quase nenhum benefício do governo teria sido conseguido
aqui sem o intermédio do seu celular. Eu via, por exemplo, a dona Beja, ali bem
próxima ao caixão; 85 anos e sem família e que, a princípio, nem ousava tocar
na tela de um smartphone por achar ser do capeta. É claro, todos se ajudam
nesses lugares em que a fome vem pela manhã tomar café, mas a questão é que
Tati era entrega. Sinônimo de devoção. Em dado momento, passou a andar com uma
camiseta onde se lia todas as regras de segurança, como lavar as mãos e ficar
em casa, em letras garrafais. Deve tê-las tatuado no braço. Em sua testa,
reluzia a frase “Eu saio por você”.
E saiu mesmo, o Tati. Para sempre...
Um a um, os moradores do morro o visitavam
naquela salinha; viam-no, agradeciam-no, àquelas máscaras incapazes de esconder
o choro de gratidão. Diziam um “Valeu, Tati” que também era “De que vale agora,
Tati?”; porque, é bem possível, que a maioria daquelas pessoas nem temesse a
pandemia tanto assim. A devoção de Tati é que os impulsionava, que os
alimentava a algo no desalento e na escuridão, e que agora, unidos ao aroma
exasperado de rosas, foram me sufocando aos poucos até me expulsar dali.
De fora da capela, no papel que anunciava
a morte de Tati, eu via seu sorriso de dentes separadinhos (como se também não
quisessem se aglomerar), e me lembrava dele indo e voltando, com duas cestas
básicas na garupa da sua cinquentinha. À minha mente vinha seu andado solto,
jogando os braços ao ar, e de novo pensava: por quê? Logo o Tati? O que mais do
que todos se cuidou?
Eu chorava copiosamente, de modo que nem
vi que alguém se aproximava de mim. O cara, um estranho, parou, e respirou
fundo; pelos sapatos dele, devia ser o carteiro. E, como quem só passa, viu meu
sofrimento, e a foto de Tati, em exposição ali na cartolina, e me perguntou
enfim: “COVID?”.
Ah, quase, quase, escapou-me um “antes
fosse”! Mas me segurei. Disse-lhe:
— Estourou seus pulmões. – Essas palavras
sempre custarão a sair, mas as obriguei. Têm que ser ditas, sim: – Três tiros
nas costas. Confundido com outro preto da região.
Sobre o autor:
Schleiden
é um autor premiado e publicado em todos os gêneros literários, trabalhando
sempre em contextos de crítica social e que flertam com o absurdo.
Recentemente, pôs em pré-venda “ångelo”, um pequeno romance de realismo
fantástico que será publicado pela editora Toma aí um poema. Ele é um vegano
defensor do meio ambiente e dos direitos de todos os animais.
Instagram: @snunespimenta
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O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.
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