Header Ads

No dia em que tomei leite estragado | Adriano Espíndola

 


A minha demora

 

São meses de exclusão, inclusive de mim. Eu me tornei um ermitão urbanoide – ou, nas palavras de meu filho Lúcio, um esquisitão, sendo que eu já o era. Depois da morte de Leon, meu irmão, “desisti” da vida, dessa, com as cores da ilusão que pintam por aí. Éramos unha e carne, numa relação que extrapolava o senso comum, ou numa relação que desafiava o senso comum. Para começar, eu não tive pai. Sou filho de mãe solteira. Quando nasci, meu irmão, também filho de mãe solteira, tinha doze anos. Ela saía muito para trabalhar e voltava exausta, dando pouco ou nada atenção aos seus dependentes – acostumados, na marra, à independência; sendo que eu dependia de Leon e ele de mim. Ele ficava comigo, me arrumava, me dava banho, preparava e me dava de comer, me levava à escola, me apresentava o que poderia supor ser uma família – longe do que mostravam nas propagadas televisivas. No dia em que tomei leite estragado, por engano, pensei que ia morrer. Tinha seis ou sete anos. Lembro bem da cara dele de desespero. Eu, como numa estrutura que se retroalimentava, era a razão de sua vida; ele não podia me perder, isso era nítido. Ele me levou para a casa da vizinha Lourdes, uma senhorinha viúva e bruxa, que vivia de preparar chás e congêneres para ajudar as pessoas carentes. Ela arrancou umas folhas de seu jardim e preparou uma bebida que eu devia tomar devagar, observando as reações do corpo. Tomei os primeiros goles e senti enjoo e calafrio. Ela acrescentou outros ingredientes. Do meio para o fim, eu já estava corado e interagindo. Voltei para casa ainda cambaleante, mas crédulo de que havia melhorado – era a expressão segura de meu irmão que me orientava. Lourdes alertou que eu tinha uma infecção alimentar e que deveria fazer o processo, pelo menos, umas duas vezes durante o dia, até extirpar o mal do corpo. Minha mãe nem soube disso. À noite, quando chegou, e se chegou, eu já estava dormindo, colado ao meu irmão. Eu precisava do seu cheiro para me sentir tranquilo. Na verdade, preciso do seu cheiro para me sentir bem e protegido, ainda hoje. Guardo comigo três blusas suas usadas, um lençol, que durmo todos os dias, e o perfume barato com o qual se benzia para enfrentar os dias. Ele era, sim, vaidoso, supersticioso e excêntrico, por isso digo que se benzia, ou se banhava de amparo, com seus rituais lindos de se ver. Leon morreu em dezessete de janeiro. Já faz quatro meses que não saio de casa. Lúcio se queixa de abandono – “O senhor parece que gosta mais dele do que de mim!”. E eu não posso respondê-lo, como ele gostaria de ouvir. Fico em silêncio, e o vácuo se esvai por nossas existências. Eu não pude ser a metade do que Leon foi para mim. Não tenho, verdadeiramente, o dom de ser pai, como Leon, ainda que sem filho biológico, o teve em relação a mim. Lúcio sente muito a falta do tio, que o tratava como neto. De certa forma, ele deveria entender a minha demora.

 

Sobre o autor:

Adriano Espíndola Santos é autor de “Flor no caos”, “Contículos de dores refratárias”, “o ano em que tudo começou”, “Em mim, a clausura e o motim” e “Não há de quê”. Advogado. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

Instagram: @adrianobespindolasantos

Nenhum comentário

O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.

Instagram: @poesianaalmabr