Há tempo para passar horas deslizando o dedo | Gustavo Tamagno
NÓS VEMOS O QUE SOMOS
Academias cheias e livrarias falindo.
Farmácias lotadas e teatros vazios. Não existe tempo para ler um livro,
apreciar a exposição do artista local, curtir a canção do músico independente
ou assistir ao espetáculo teatral na casa de cultura da cidade. No entanto, há
tempo para passar horas deslizando o dedo e distribuindo corações em forma de
curtidas para publicações alheias. Há tempo para se meter em encrencas e
desferir xingamentos a outras pessoas em comentários pelas redes sociais.
Ferreira Gullar, um dos maiores autores
brasileiros do século XX, já alertava: “a arte existe porque a vida não basta”.
Desde a pré-história o homem já se utilizava de pinturas nas paredes das
cavernas para se expressar. A arte, seja ela qual for, é a forma mais genuína
que o artista encontrou para mostrar ao mundo as suas perspectivas, para gritar
aos quatro ventos as injustiças que existem e para desvelar que há sempre um
lado bom quando se procura bem.
Alguns anos atrás visitei uma exposição
artística para gravar uma reportagem. Uma das artistas plásticas que me
concedeu entrevista explicou, afinal, qual é a grandeza da arte. Se trata da
subjetividade que é transmitida por ela. Todas as pessoas podem olhar para o
mesmo quadro, mas as percepções daquela apreciação serão distintas. Uma mesma
obra pode fazer as pessoas terem sensações e interpretações mais diferentes
possíveis. Uma pintura que, para o outro, pode causar uma sensação de dor, para
mim pode significar uma representação de alívio. E continua sendo arte. Ou
melhor, isso é arte.
O escritor Rubem Alves tem uma frase que
se complementa – ou quase se iguala – com outra da francesa Anaïs Nin, e elas
explicam isso. A dele diz assim: “nós não vemos o que vemos, nós vemos o que
somos. Só veem as belezas do mundo, aqueles que têm belezas dentro de si”. Já
ela fala o seguinte: “não vemos as coisas como elas são: vemos as coisas como
somos”. Ou seja, ambos querem dizer a mesma coisa: a gente não vê aquilo que,
de fato, está olhando. É mais profundo.
Todo mundo pode ver a mesma coisa, mas nem
todo mundo percebe a mesma coisa. A gente vê além dos olhos. A gente vê com a
nossa bagagem, com a nossa experiência, com os nossos sentimentos e com a nossa
sensibilidade. Não consigo fazer o outro observar da mesma forma que eu,
justamente porque ele tem perspectivas da realidade diferentes da minha. A
gente pode perceber detalhes que quase ninguém percebe. A gente pode avistar
preciosidades em situações que para os demais é apenas algo simples. A gente
pode vislumbrar um objeto que para os outros não passa de mais uma
quinquilharia inútil, enquanto para nós pode ser um tesouro, por sabermos toda
a história e o significado dele. A gente pode achar o sonho de uma pessoa bem
sem graça quando aquilo, para ela, é tão valioso.
A arte é tão magnífica que nos permite
essas percepções distintas e mais do que isso, compreender que, muitas vezes, o
outro não fará a mesma interpretação que a minha. A arte é maravilhosa porque
permite ao artista externalizar os seus sentimentos e emoções e, ao mesmo
tempo, concede para quem aprecia a obra a possibilidade de abrir a sua bagagem
cultural para fazer aquela leitura do que foi produzido, seja um livro, um
quadro, uma música, uma escultura, um espetáculo ou qualquer outra das mil
maravilhas que se criam. A arte nos ajuda a entender que nós vemos o que somos.
Quem não vê arte em tudo que é produzido, infelizmente ainda não tem a arte
dentro de si.
Sobre o autor:
Gustavo
Tamagno Martins é jornalista e escritor nascido e morador
da Serra Gaúcha. Autor dos livros "O cemitério misterioso", "O
sótão das lembranças" e "O colecionador de momentos e outras
crônicas", além de ter participação nas antologias "Árvore da
vida" e "Crônicas da noite". Foi patrono da Feira do Livro de
Nova Pádua.
Instagram: @gustavotm27
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