segunda-feira, 31 de julho de 2023

Este angu tão perfumado não foge à regra / Paulo Silva

 


Angu

 

Tão iguais os dias de Luzia! O relógio bate num só ritmo, o sol e a lua seguem em desencontro. Enquanto certas roupas dançam um louvor vertical, outras tantas choram a pele enrugada em cima da cama. Comida pros cachorros, tirar poeira dia sim dia não, o remédio da semana separado no porta-comprimidos – para Hélio também, a insistência em viver.

 

Este angu tão perfumado não foge à regra: é batido na mesma cozinha de 43 anos atrás, no calor de Betim, onde Hélio foi fisgado pela promessa da Fiat. Tem muito benefício, plano de saúde, almoço, transporte da empresa, tem clube. Tem até carro mais barato. O salário não é bom, mas dá pra crescer lá dentro, virar encarregado. Ela, incerta de deixar os pais em Nanuque, economizou nas palavras: Peixe morre é pela boca. Três dias depois, aceitou a mudança.

 

A panela cravada na mão direita é Luzia, o seu milagre. Desde o mês passado: a metade esquerda do corpo vai tentando trabalhar com o vigor que a vida nunca lhe negou – a morte não tem nome até chegar à carne. Algo dói entre o braço e o ombro, convulsionados em repetição de fubá. Ela insiste em bater um pouco mais para o angu não empelotar, Depois o Hélio reclama. Ele deve tá chegando. Bate, bate, bate, o fogão parece mais perto do rosto, ela se inclinando.

 

A dor cresce como pimenta em boca de criança e Luzia solta a panela no fogão.

 

Apaga o fogo. Geme. Arde de dor. Chora a janta quase pronta.

 

Do lado de fora dela, o mundo está no lugar. A água quente escorrendo – do rosto ao queixo ao peito – rega o dentro de Luzia, instalando nela a novidade da ferrugem: cresce-lhe a visão de uma estrada irrecuperável, 43 anos de caminhos abertos com a foice do marido, toda uma vida certa e inútil, como inúteis são as veias grossas de suas mãos, uma coisa sem nome latejando no osso do braço, a água suja que, rodando na pia, não evita o ralo, a vassoura que não se cansa de negar a poeira do mundo, a rosa dos ventos.

 

Luzia esquece a dor na carne – um quadro de arrependimento cria-se diante dela: quis ser dançarina, professora, secretária, ajudante de cozinha, bordar pra fora, colocar placa com “Vende-se verdura”, fazer chup-chup de abacate e banana a 15 centavos. Quis sair de casa, aprender a pegar ônibus, ver o centro de Belo Horizonte, o formigueiro humano da praça Sete, o mirante do Mangabeiras – delícias saídas da cartola que Hélio tem em forma de boca. O mundo no mundo e ela em casa. Para além do muro: poucas vizinhas, a igreja e a Fiat.

 

Hélio entra em casa e sente o cheiro de angu. Coloca a marmita usada na pia, separa o uniforme imundo, espia o que tem nas panelas. Não tem angu? Já são quase sete, Luzia acende a lâmpada da cozinha. Tem, mas joguei fora. Empelotou. O homem abre a lixeira – e pela primeira vez estranha a mulher com quem divide a vida. Cala-se e janta arroz, feijão, couve refogada e frango frito de ontem.

 

Sobre o autor:

Paulo Silva (ou Paulo Tassa) nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (2023) pela Universidade de Coimbra e mestre em Literatura Brasileira e Comparada (2012) pela mesma instituição. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). Em 2018, estreou na poesia com “caída” (2018, Letramento) e em 2021 lançou “o homem à espera de si mesmo” (poesia, Mosaico).

Instagram: @paulotassabr

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