Angu
Tão
iguais os dias de Luzia! O relógio bate num só ritmo, o sol e a lua seguem em
desencontro. Enquanto certas roupas dançam um louvor vertical, outras tantas
choram a pele enrugada em cima da cama. Comida pros cachorros, tirar poeira dia
sim dia não, o remédio da semana separado no porta-comprimidos – para Hélio
também, a insistência em viver.
Este
angu tão perfumado não foge à regra: é batido na mesma cozinha de 43 anos
atrás, no calor de Betim, onde Hélio foi fisgado pela promessa da Fiat. Tem muito benefício, plano de saúde, almoço,
transporte da empresa, tem clube. Tem até carro mais barato. O salário não é
bom, mas dá pra crescer lá dentro, virar encarregado. Ela, incerta de
deixar os pais em Nanuque, economizou nas palavras: Peixe morre é pela boca. Três dias depois, aceitou a mudança.
A
panela cravada na mão direita é Luzia, o seu milagre. Desde o mês passado: a
metade esquerda do corpo vai tentando trabalhar com o vigor que a vida nunca
lhe negou – a morte não tem nome até chegar à carne. Algo dói entre o braço e o
ombro, convulsionados em repetição de fubá. Ela insiste em bater um pouco mais
para o angu não empelotar, Depois o Hélio
reclama. Ele deve tá chegando.
Bate, bate, bate, o fogão parece mais perto do rosto, ela se inclinando.
A
dor cresce como pimenta em boca de criança e Luzia solta a panela no fogão.
Apaga
o fogo. Geme. Arde de dor. Chora a janta quase pronta.
Do
lado de fora dela, o mundo está no lugar. A água quente escorrendo – do rosto
ao queixo ao peito – rega o dentro de Luzia, instalando nela a novidade da
ferrugem: cresce-lhe a visão de uma estrada irrecuperável, 43 anos de caminhos
abertos com a foice do marido, toda uma vida certa e inútil, como inúteis são
as veias grossas de suas mãos, uma coisa sem nome latejando no osso do braço, a
água suja que, rodando na pia, não evita o ralo, a vassoura que não se cansa de
negar a poeira do mundo, a rosa dos ventos.
Luzia
esquece a dor na carne – um quadro de arrependimento cria-se diante dela: quis
ser dançarina, professora, secretária, ajudante de cozinha, bordar pra fora,
colocar placa com “Vende-se verdura”, fazer chup-chup de abacate e banana a 15
centavos. Quis sair de casa, aprender a pegar ônibus, ver o centro de Belo
Horizonte, o formigueiro humano da praça Sete, o mirante do Mangabeiras –
delícias saídas da cartola que Hélio tem em forma de boca. O mundo no mundo e
ela em casa. Para além do muro: poucas vizinhas, a igreja e a Fiat.
Hélio
entra em casa e sente o cheiro de angu. Coloca a marmita usada na pia, separa o
uniforme imundo, espia o que tem nas panelas. Não tem angu? Já são quase sete, Luzia acende a lâmpada da cozinha.
Tem, mas joguei fora. Empelotou. O homem abre a lixeira – e
pela primeira vez estranha a mulher com quem divide a vida. Cala-se e janta
arroz, feijão, couve refogada e frango frito de ontem.
Sobre o autor:
Paulo Silva
(ou Paulo Tassa) nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É doutor
em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (2023) pela Universidade de
Coimbra e mestre em Literatura Brasileira e Comparada (2012) pela mesma
instituição. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). Em 2018, estreou na
poesia com “caída” (2018, Letramento) e em 2021 lançou “o homem à espera de si
mesmo” (poesia, Mosaico).
Instagram: @paulotassabr
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O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.
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