Sobre minhas tripas / de J.M. Gouvêa
Sábado
era dia de farra. Dia de caçar passarinho, de empinar pipa e de olhar pro céu
decifrando as nuvens. De tomar banho no rio. De roubar manga no vizinho com a
ajuda dos amigos, torcendo para o cachorro não rasgar nossos calções. Sábado
era dia de farra, menos quando a Tia Dina chamava. Irmã mais velha e solteira
da minha mãe, ela morava com a minha avó e as duas tomavam conta uma da outra.
Aos poucos, a víamos se transfigurando na própria mãe, como se passado,
presente e futuro fossem um só naquela velha casa de madeira. Um vórtice
temporal no meio do Espírito Santo, onde as areias do tempo giravam como peão.
A
semana santa estava chegando e Tia Dina era a encarregada da decoração da
Igreja. Em um calendário que conseguia na farmácia todo início de ano, ela
marcava cada festividade, e se preparava. Seu maior prazer na vida era ouvir os
elogios ao fim de todo evento da paróquia, e a semana santa era o maior deles.
As procissões, vigílias e a encenação da Paixão de Cristo eram comentadas
durante o ano todo. Seu esmero na Páscoa era como um investimento a longo
prazo, gerando dividendos valiosíssimos.
Convocadas
sumariamente, as crianças do bairro foram todas cedinho para a casa de minha
tia e minha avó. A missão era correr toda Fazenda Simonato em busca de flores.
Qualquer uma. Cada um saia com uma cesta, balde ou algo que o valesse, e só
voltava quando estivesse com o recipiente lotado. Mas é claro que o sábado
perdido tinha que ser compensado de alguma forma, do contrário a turba de
infantes não aceitaria a tarefa. E Tia Dina sabia perfeitamente como arrebatar
aquela matilha, sempre faminta.
No
quintal da velha casa de madeira, cresciam bananeiras. Desde sempre e até hoje –
anos após o adeus de Tia Dina – as bananas eram abundantes. Tanto, que não
dávamos conta de comer, e a solução era fazer compotas e mais compotas da
fruta. Eu e toda a criançada adorávamos, e já sentíamos a boca salivar ao
perceber a proximidade da semana santa. Páscoa lembrava igreja, que lembrava
Tia Dina, que lembrava flores, que lembrava doce de banana.
Mas
a colheita de flores silvestres não era fácil. A cada ano o pasto aumentava e
os arbustos e touceiras rareavam. Mas eu tinha me preparado. Cerca de duas
semanas antes, ao me encontrar completamente sozinho - protegendo o Forte
Apache contra a ameaça pele-vermelha - eu havia encontrado um enorme jasmim repleto
de botões. Tratei de decorar como chegar lá, pois sabia que seria o caminho
mais rápido para as compotas da Tia Dina. No sábado derradeiro, rumamos cedo
para começarmos o quanto antes a catação.
Cê
acha que vai ser fácil achar as flores esse ano?
Acho.
Ano
passado foi bem difícil. Demorei muito pra trazer a cesta cheia…
Pois
eu aposto que vou ser o primeiro a chegar e vou comer o doce todo sozinho!
Corri.
Corremos. Como abelhas famintas em busca de flores. Eu lembrava perfeitamente
como chegar no jasmim e, assim como uma cobaia de laboratório que vence o
labirinto para conseguir sua guloseima, eu zunia pelas trilhas da fazenda sem
titubear. Meu chamariz era um moinho abandonado. As outras crianças não
entenderam minha avidez e algumas até tentaram me acompanhar, mas desistiram
quando sentiram o potencial da minha obstinação. Deflorei o jasmim com tanta
pressa que até feri as mãos e na volta, troquei a velocidade pela ostentação.
Usando
o mesmo caminho, eu agora regozijava minha inteligência e me ria, imaginando as
alvíssaras de meus colegas e de minha tia. Vez ou outra me deparava com alguma
criança – ainda pobre de flores – buscando inutilmente no mar verde de pasto,
beliscando algumas pétalas mínimas no capim. Me olhavam com descrença, coçando
os olhos para tentar dissipar alguma miragem ou sujeira na vista.
Onde
você achou isso tudo?
Desiste,
Tinoco…
Divide
comigo!
…
Ao
chegar na casa, com um sorriso que não me cabia na cara, fui correndo
reivindicar minha recompensa. Já sentia o cheiro ao abrir a porteira, mas
quando entrei na cozinha, vi Tia Dina ainda mexendo o tacho.
Que
cê tá fazendo aqui, moleque?
Aqui,
tia.
Mas
o que é isso? Roubou de quem?
O
doce tá pronto?
Tá
quase, mas tá quente. Tem que esfriar. – Tia Dina ainda desconfiada,
perscrutava as flores enquanto terminava de mexer o doce fumegante, já com a
lenha morta.
Você
deve imaginar que eu comi o doce quente, certo? Certo. A ponto de praticamente
não sentir o gosto. Comi pelo júbilo, pela sensação de vitória. Pelos famintos
da África e por seus filhos. A ponto de minha tia ter que me tirar da mesa para
que as outras crianças – retardatárias na disputa – pudessem receber o seu
quinhão. Muito a contragosto, eu me ausentei da cozinha e fui beber água na
cabaça que havia na sala. Lá, pitando um cachimbo quase apagado, estava vovó. A
fumaça que subia deixava seu rosto ainda mais enigmático do que costumam ser os
rostos das velhas. Ela tirou o cachimbo da boca e sem desviar o olhar da janela
ela disse: “Doce quente solta as tripas.”
Mais
tarde, Tia Dina ficou com medo de tanta criança empanturrada voltar para casa
ao mesmo tempo, principalmente porque os jornais alardeavam sobre um bandido
que havia chegado da capital em fuga. Decidiu acompanhar a procissão mirim de
volta à vila. Fomos por dentro das fazendas, para evitar o acostamento da
estrada. O céu marrom anunciava tempestade e a ventania já bagunçava o revoar
das aves. De repente, o azucrinar dos pequenos começou a diminuir e as risadas
rarearam. Tudo por causa da velha mangueira seca. A história, todas as crianças
já sabiam e nenhuma queria ouvir, mas Tia Dina fez questão de recontar a
tragédia.
Foi
numa tarde assim sem sol que a filha do Coronel Rutinaldo se pendurou pelo
pescoço naquela mangueira seca. De certo foi paixão proibida pelo pai. No dia
era frondosa, tinha até fruta madura. Mas o desgosto da família foi tão grande
que depois da menina se enforcar, a árvore perdeu todas as folhas e morreu. Mas
continua lá – deu uma pausa para enfatizar a sombria ameaça – Dizem que quando
o vento assobia alto, a gente escuta a menina chorando no além.
Corri.
Corremos. Ignorando os “volta aqui!” entremeados das gargalhadas da Tia Dina.
Nenhuma criança queria arriscar ouvir espirito chorão. Muito menos perto da
semana santa. Por um lado, foi bom, porque nem sentimos a distância. Cheguei em
casa antes da chuva – que afinal foi bem fraca – mas os ventos continuaram. O
fato é que toda a correria pelas flores e depois para fugir da mangueira me
fizeram deitar cedo. Peguei no sono enquanto lia um gibi e no meio da
madrugada, o doce de banana veio reivindicar sua liberdade.
E
com que revolta. Acordei com cólicas colossais que aliviaram um pouco depois de
dois ou três arrotos. Mas a questão não era apenas gasosa. Eu precisava expelir
o pecado da gula. Normalmente eu ia até o quintal na parte de trás da casa,
onde o banheiro se encontrava, mas a urgência me fez temer o trajeto, e decidi
pelo penico que ficava embaixo da cama. O vento ainda castigava e enquanto eu
me aliviava de cócoras, percebi as sombras que vinham da janela se
transformarem em uma silhueta medonha na parede do quarto.
Nosso
abacateiro era agora a mangueira seca e eu podia jurar que o que eu via era a
enforcada se balançando. O uivo que descendia dos céus trazia as lamúrias da
defunta e subitamente, ouvi o tilintar da janela. A chorona queria me pegar e
me levar com ela. Me limpei rapidamente com as folhas do gibi e corri, ainda
com o penico cheio nas mãos, para o quarto de meus pais no fim do corredor.
Pai,
me salva! – o desespero me fez ignorar o fato de que eu o abordava com o penico
a temerários centímetros do seu rosto.
Calma,
garoto. O que aconteceu? – disse ele enquanto tirava o enxofre do nariz.
Está
na janela! A chorona da mangueira vai me pegar!
Valha-me
Nossa Senhora, é o bandido da capital! – minha mãe tinha os olhos arregalados
como os meus, embora sua preocupação fosse de cunho policial.
Se
levantando como um herói de guerra e municiado com o penico que tirara de
minhas mãos, meu pai partiu austero, para enfrentar o que fosse. Contra bandido
ou aparição, o doce de banana era nossa única defesa.
Ah! A infância. Sorte de quem teve a chance de comer fruta no pé, tomar banho e pescar em um rio nos fundos de casa, e correr pelo mato com companheiros de aventuras. Boa sina a de quem experimentou o cheiro de doce caseiro se espalhar como uma nuvem açucarada pela casa (a especialidade do meu pai era o doce de mamão verde). As lembranças dessa época nunca desaparecem, até os joelhos ralados nos fazem sorrir, quando o mertiolate arrancava lágrimas, mas a mãe soprava como se isso ameniza-se o ardor. Obrigado pelas lembranças, J. M. Gouvêia.
ResponderExcluirCaro Leonardo, obrigado pelo comentário! Belas palavras e recordações.
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