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Os passos de Miriam Alves em dez poemas para não perder de vista

 


Miriam Alves nasceu em 1952, São Paulo. É professora e assistente social, além de escritora e poetisa. Nos anos de 1980, passa a fazer parte do coletivo Quilombhoje Literatura, que dá início a série literária independente intitulada Cadernos Negros que neste ano, 2023, completa 45 anos. Cadernos Negros é um movimento de resistência para veiculação da arte afro-brasileira. Em entrevista à revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Número: 51 (2017), a autora afirma

 

“(...) considero importante me dizer escritora negra brasileira. E não é rótulo. É uma atitude política. Na verdade, se dizer escritora negra e reconhecer o movimento literário que surgiu em 1978, com a publicação do primeiro Cadernos negros em São Paulo, que foi um marco para questionar a literatura brasileira como um lugar da hegemonia branca do saber e de ideias que privilegia a produção do escritor branco, de classe média alta, heteronormativo e com grande influência do pensamento eurocêntrico, se autorreferenciando como universal. A literatura negra, numa manifestação coletiva, surge da necessidade de escritores negros e escritoras negras serem autores e sujeitos da história. História nos dois sentidos, no sentido do ficcional, poético, literário, e no sentido de fazer história mesmo. Então, não é um rótulo e não aprisiona: liberta. Liberta não só eu que escrevo, mas também os leitores negros e brancos.”  (Leia a entrevista completa aqui).

 

Ou seja, não é possível pensar, falar, ler Miriam sem compreender seus passos históricos diante do cenário literário como um ato político, bem como compreender a história e importância do Cadernos Negros para o que temos hoje em debate e materialização sobre a escrita afro-brasileira. Sobre isso a autora diz

 

“Os temas que me interessam e sempre me interessaram são os sentimentos e os relacionamentos humanos de forma geral. Eu praticamente enfoco todos eles na minha escrita, partindo sempre da minha inserção social, ou seja, de mulher negra. E o que me instiga a escrever são fatos e como eu e o outro interagimos com esses fatos. Por exemplo, a janela quebrada de um coletivo, como os passageiros se relacionam com isso e como eu vejo essas manifestações. A ideia surge em forma de poema, crônica, ensaio, novela, ou ainda um romance. Minha escrita começa primeiramente por uma elaboração mental, um pensamento que vai tomando forma e depois deságua na palavra escrita.”

 

Assim, sua escrita nasce no aqui e agora, da experimentação que se manifesta no sujeito autoral, neste caso, de escritora negra brasileira. Miriam é autora dos livros de poemas Momentos de busca (1983) e Estrelas no dedo (1985); dos romances Bará: na trilha do vento (2015) e Maréia (2019); e das coletâneas de contos Mulher mat(r)iz (2011) e Juntar pedaços (2021).

 


A editora Fósforo (Círculo de Poemas), lançou no ano de 2022 toda a produção poética de Miriam – quarenta anos de literatura – no livro Poemas Reunidos. Poemas que perpassam por diversos aspectos do indivíduo enquanto ser subjetivo e social; e da sociedade enquanto coletivo que precisa de movimento. Em entrevista ao Quatro cinco um, a autora discorre sobre o mercado literário

 

“O mercado foi cutucado. Já havia movimentos literários de negros, da periferia, o slam. A gente reivindicou espaço — não com “coitadismo”, como dizem, mas porque estamos aqui, somos nação, queremos que saibam que existimos. Somos as placas tectônicas que começaram a se mexer. Alguma coisa saiu do controle e o mercado editorial percebeu que teria de fazer algo.” (Ler entrevista completa aqui

 

Poemas Reunidos é um confronto ao silêncio do mercado editorial e da mídia na produção literária afro-brasileira, porque prova que a produção sempre existiu, mas não podia ultrapassar os limites impostos dentro de uma sociedade racista, machista e capitalista. Em 1982, Miriam participa do número 5 do Cadernos Negros e começa da seguinte forma: “comecei chorando, agora grito palavras e lágrimas, os soluços e as agulhas da opressão que ferem fundo minha pele negra”.

 

Acesso a literatura é um Direito Humano, nação nenhuma se desenvolve pelo apagamento de sua história e produção cultural. Ler e adentrar no universo oferecido por Miriam, como a própria autora diz, é movimentar as placas tectônicas. Movimento que é pulsante em seus versos. Selecionamos, portanto, dez poemas retirados do livro Poemas reunidos, Editora Fósforo (2022).

 

Fantasmas alheios

 

Ouço passos nas escadas

são fantasmas

que não me pertencem

ecoando numa saudade

preenchendo o ar.

 

Lacrimejo os olhos

numa doida vontade de chorar

não concretizada...

Os passos descem as escadas

ressoando, preenchem o ar

os fantasmas não me pertencem.

 

Não choro

apesar de lacrimejar os olhos

a saudade não é minha

nem os fantasmas.

(Cadernos Negros [1982 – 2010])

Ético

 

o eu civil

o eu poético

         encontram-se

juntos fazem farra em poesia.

(Poemas esparsos [1982 – 2020])

 

Lamento

 

Não quero falar

a voz morre seca

na garganta

implorando por um gole

de água

de pinga

de cerveja

de liberdade

 

Eu não quero dizer

engolindo tristemente

as agulhas da opressão

ferindo a garganta

rasgando

sangrando

dilacerando

a razão

 

Não quero saber

de Deus

da vida

da morte

de você

de mim

 

Não quero cantar

o que ofende

o que implora

o que deflora as mentes

em toque

de tapas

em murros

nas masmorras da vida

 

Não quero gemer

mas...

o grito

agudo desafinado

exala estalando

a língua amordaçada

sofrendo calada

sofrendo dizendo

cuspindo sangue

de doença não descoberta.

(Momentos de busca [1983])

 

Voz

 

Sou a voz do vento

quebro o silêncio do planeta

acalentando a solidão das casas.

(Estrelas no Dedo [1985])

 

Naturalmente

 

Nas casas e quintais

esmagam flores do passado

antes de murcharem

 

Calam minha boca

antes muito antes

das palavras brotarem

 

Esmagam s superfície

não extirpam as raízes

nem de flores

nem de palavras

 

Teimosamente

numa lei de resistências

elas brotam sempre

sempre

numa nova primavera

de plantas

e palavras.

(Estrelas no Dedo [1985])

 

Eu Falo

 

A Fala é um falo

Que abre suas entranhas

Atravessa suas certezas culturais

((De)clamar, in Zines / Coleção Poemas de ocasião [2010-2013])

 

Madrugada esfria

 

Madrugada esfria

         não dorme

                   acena

                    caminhos

         por onde vou chegar.

(Feminiz-ação, in Zines / Coleção Poemas de ocasião [2010-2013])

 

Verbo

 

As palavras vão sangrando as culpas todas

flagelando as verdades pomposas e tolas

na construção da ação.

(Partículas poéticas, in Zines / Coleção Poemas de ocasião [2010-2013])

 

Tempo de consciência

 

Para Conceição Evaristo

 

O tempo nos colocara

frente a frente

e no verso

poemas

reflexo de nossas consciências irmãs.

(Partículas poéticas, in Zines / Coleção Poemas de ocasião [2010-2013])


Sussurros

 

Agora não preciso mais

gritar

este ser inquieto que me habita

sussurra como o vento forte das ventanias

                                      vendavais

 

Agora hoje

apaziguada na luta do ser

resisto sendo eu que me habito

respiro num alívio de saber da morte

                            saber-se viva.

(Partículas poéticas, in Zines / Coleção Poemas de ocasião [2010-2013])


5 comentários:

  1. Olá,
    Que versos profundos. Gostei principalmente de como "Madrugada esfria" foi montado, complementa os versos.

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  2. Uau, o post foi uma verdadeira aula. Saí daqui com um bom tanto de experiência e conhecimentos a mais. Gostei muito da explicação sobre não ser um rótulo.
    E a escrita, né? Profunda!!!

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  3. Oie, tudo bem? Não conhecia a autora mas gostei bastante de saber mais sobre ela e seu trabalho. Ganhei um livro recentemente que tem poesia e fiquei bem curiosa pela experiência. Dos trechos que você mostrou, gostei de madrugada fria. Um abraço, Érika =^.^=

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  4. Oi, tudo bem?
    Confesso que, infelizmente, ainda não conhecia a autora e nem o livro. Pelo que você falou no post e pelos poemas, acredito que seja uma leitura com muitas reflexões e que aborda questões muito importantes. Amei o post e poder conhecer um pouco sobre a obra da autora. Beijos

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  5. Encontrar poemas com reflexões cotidianas que vem da alma. Não conhecia esta autora e nem o seu trabalho. Foi muito bom compartilhar aqui sobre ela e seus livros.

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O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.

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