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Nem sei por onde começar / Adriano Espíndola Santos

 


SUPLICIANTE

 

Nem sei por onde começar. Na verdade, devia deixar isso pra lá. Mas, sabe, leitora, preciso muito desabafar; não faz bem ficar com uma pedra desse tamanho entalada na garganta por tanto tempo. Isso aconteceu há nove ou dez anos, na casa da minha madrinha Anita. Eu amava ir para a sua casa. Ela fazia uns bolinhos de chuva que até hoje não encontrei igual. Também, a mansão ocupava um quarteirão inteiro, com um espaço gigante para brincar, com bichos espalhados por todos os lados. Havia uma jaula, que ela chamava de criadouro, com quatis, jaguatirica e uma porção desses animais exóticos. Naquela época, com uns dez anos, já sabia que queria ser biólogo ou veterinário; então era essa a razão, intuo, que me permitiam entrar nos cubículos do zoológico. O filho da madrinha, o Lucas, tinha seis anos, e era um pestinha. Felizmente, eu não ficava só com o moleque; uma babá, de nome Maria, meio rabugenta, acompanhava-o para onde ele fosse. Coitada, tinha uma cara de dar dó; era sofrida, e fazia o maior esforço para seguir o ritmo. Bem, não é sobre ela, é sobre ele. No dia, deu-me uma doideira na cabeça. Eu precisava dar um susto no moleque. Arrumei uma armadilha próximo à jaula da jaguatirica, o único bicho carnívoro que tinha condições de, pelo menos, morder o danado. Quando não estavam perto, a babá e o Lucas, cavei um buraco e cobri-o com folhas secas. Logo que o menino caísse, eu o jogaria na jaula e o deixaria lá, para que ele aprendesse na marra, já que não tinha ninguém que botasse limites. Vi que o cabeção voltava e joguei uns dos seus brinquedos perto da arapuca. A tonta da Maria correu para apanhá-lo, mas o menino foi para um lado e ela, para o outro, caindo de cara na jaula e arrebentando a porta. Isso, por consequência, permitiu a liberdade do bichano, que, confuso, tentou pular a piscina e ficou com o rabo preso no sugador, morrendo em seguida, afogado. Uma fatalidade sem tamanho. Maria estava literalmente estropiada. Parece que um caminhão havia passado sobre ela e a cena do crime. Eu assisti ao tumulto com um certo gosto mórbido na boca. Poderia ter salvado a jaguatirica? Sim, mas havia o risco de ser rasgado e mordido. Poderia ter ajudado Maria? Sim, mas ela poderia dar queixa de mim, inventando que eu teria feito aquilo. Sim, eu fiz; contudo, sem o propósito de machucá-la ou matar o bichano. Lucas tentou pular na piscina para salvá-lo, puxa!, mas aí a mãe já havia chegado e segurou o malandrinho. Montei uma cara de pavor, e a madrinha teve pena de mim. Serviu-me soverte com biscoitinhos ingleses. Quem levou a culpa? Acho que o caseiro, que no momento trabalhava no outro extremo da casa. Quero dizer, em minha defesa, que não sou assim tão mau. Mas ainda tento vingar a morte do bichano.

 

Sobre o autor:

 

Adriano Espíndola Santos é autor de “Flor no caos”, “Contículos de dores refratárias”, “o ano em que tudo começou”, “Em mim, a clausura e o motim” e “Não há de quê”. Advogado. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

 

Instagram: @ adrianoespindolasantos


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O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.

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