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A gente não costumava trocar presentes / Luciana Braga


 

MEMÓRIAS DE NATAL

 

Quando eu era criança, a minha tia me levou para conhecer um lixão. Eu ainda sou pequena agora, mas naquele tempo eu era ainda mais minúscula e o que de longe parecia uma montanha, era lixo empilhado e ao redor dele muitas pessoas maltrapilhas. Dentre elas, algumas crianças. Uma em especial chamou a minha atenção, porque ela era do meu tamanho, mas não sorriu para mim de volta quando eu sorri para ela. A menina carregava um saco plástico sujo e colocava dentro dele algumas embalagens de remédios que havia encontrado. Eu não sei se estavam vencidos, ela provavelmente também não sabia, mas estava seguindo severas instruções do seu irmão mais velho que recolhia resto de alimentos mais à frente.

 

Na hora, eu não entendia o que eu fazia ali. O cheiro era insuportável e eu queria voltar para casa. No entanto, minha prima me colocou nos ombros dela para eu enxergar melhor e o que eu vi nunca mais sumiu da minha memória.

 

Depois, seguimos para uma casa e doamos alimentos e não sei se era uma lágrima, mas algo límpido rolou no rosto sujo daquela mãe. Voltei para casa em silêncio, fingindo cansaço e sono. Eu demoraria anos para processar que existiam pessoas mais pobres que eu e que era errado separar a verdura dentro do prato.

 

Eu sempre gostei muito do natal porque a alegria da minha mãe era fazer um jantar farto e costurar roupas novas para a gente. Não comíamos peru porque era caro, mas comíamos frango e para mim era igual. A gente não costumava trocar presentes. Os presentes eram as roupas novas e éramos agradecidas.

 

Hoje moro com uma amiga e a gente está planejando uma ceia. De repente, largo a caneta e retorno ao lixão e vejo a lágrima descendo pelo rosto sujo daquela mãe ao receber alimento. E a lágrima vira córrego que mata a sede de tantos animais sozinhos e protegidos da ação do homem. Eu espero que o fogo não chegue ali, mas sempre chega cedo ou tarde.

 

Pisco meus olhos porque minha amiga está me pedindo para escolher entre creme de galinha ou vatapá porque eu nunca me acostumei a comer peru. E eu falo em voz alta “E se eu responder algumas cartinhas do correio?”. Ela não entende. Não importa o quanto eu faça, na minha memória, aquela criança nunca sorri e o único presente que eu queria receber era esse: o sorriso de uma criança faminta por tudo.

 

Sobre a autora:

Luciana Braga é professora, pesquisadora, escritora e desenhista. É doutoranda em Letras pela UFC, participa de coletivos literários, é co-autora e ilustradora da antologia Todas as formas que há de amar (2020), participou das coletâneas Pelo direito de amar (2021), Histórias de uma quarentena (2021) e Coletânea de Crônicas da Unifor (2022). Atualmente lançou seu primeiro livro de crônicas solo intitulado Escrita Infinita (2021).

Instagram: @luciana_braga7

www.escritainfinita.com.br


Um comentário:

  1. oi xará, tudo bem?
    suas memórias de natal são muito especiais, tocam forte.
    que você sempre receba o sorriso de muitas crianças.
    abraços

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O Poesia na Alma pertence ao universo da literatura livre, como um bicho solto, sem dono e nem freios. Escandalosamente poéticos, a literatura é o ar que enche nossos pulmões, cumprindo mais que uma função social e de empoderamento; fazendo rebuliço celular e sexo com a linguagem.

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