GUARDIÃO DAS MEMÓRIAS / LEONARDO NÓBREGA
“O
luto é um processo lento e doloroso, que tem como características uma tristeza
profunda, afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a
pensamentos sobre o objeto perdido, a perda de interesse no mundo externo e a
incapacidade de substituição com a adoção de um novo objeto de amor” “O luto,
de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma
abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o
ideal de alguém, e assim por diante” (Luto e Melancolia - FREUD, 1917).
Os
lutos são diversos e acontecem com intensidades diferentes para cada ser
vivente e com cada perda em particular, quanto mais importante o objeto do
desejo/amor mais profunda, sofrida e densa é a névoa que envolve o enlutado.
Para a maioria das pessoas o punhal mais fino e doído a perfurar o coração é o
do luto de pessoas amadas incondicionalmente, é uma pontada aguda que parece
perpétua – mas não é -, que destrói quem fica nesse mundo. Porém, a dor se
metamorfoseia em saudade e lembranças dos bons momentos vividos.
Entretanto,
das perdas que já sofri, e foram muitas - brinquedos na infância, virgindade na
adolescência (rsrs), algumas namoradas pela vida e algumas mortes também –
amigos, avós, tios, tias e a mais dolorosa: meu pai. –, porém, ano passado experimentei um luto
inédito. Com a morte do último dos irmãos do meu pai eu percebi que era o final
da história original de uma família, era o crepúsculo de uma geração, mais que
isso, era o final da geração que originou a minha geração.
Acredito
que muitas pessoas já passaram por esse momento, mas não sei se pararam para
pensar um pouco sobre isso. As lembranças ancestrais originais se foram, claro
que temos a nós mesmos, descendentes, que ouvimos essas histórias várias vezes
e, às vezes até achávamos chato por tanta repetição, mas agora sentaríamos
satisfeitos no chão em torno deles e ficaríamos horas nos deliciando com suas
crônicas e com suas vozes, sentindo seus cheiros e rindo dos seus sorrisos
mesmo se o relato não fosse engraçado para nós; existem momentos cômicos que só
valem para quem viveu o instante. Apesar de que nós, netos e sobrinhos, sejamos
fiéis depositários da história da família, daquela nuclear de que falo e da de
antes disso que chegou a nós já um tanto distorcida, modificada, aumentada, o
que passamos para nossos filhos e netos são apenas retalhos de lembranças,
nesgas de memórias incompletas e sem a emoção da vivência. Acabam como
histórias esvaziadas que irão definhando com o tempo até virarem fiapos e se perderem
no buraco negro do tempo; tempo que tudo corrói, destrói ou muda.
Porém,
é claro que existe toda uma vivência nova onde os atores se misturam. No meu
caso eram as reuniões na casa do patriarca da família raiz, as caranguejadas de
domingo, a serigueleira onde os primos subiam nos galhos mais altos para comer
fruta no pé, os passeios de domingo para a serra, finais de semana encenando
batalhas indígenas no sítio de um tio, assistir a copa do mundo reunidos,
aniversários... Entretanto, o evento ao qual me refiro e que me deixou acordado
uma noite inteira foi perceber que nada disso existiria mais, mesmo que as
reuniões continuassem entre os primos a falta deles é muito difícil de superar.
No
entanto não podemos nos eternizar, por mais que a ciência médica avance essa
guerra está perdida desde o momento em que nascemos, como reza um provérbio
russo “o caixão é primo do berço” são feitos da mesma madeira e em algum
momento esbarramos com o inevitável final, com a conclusão do caminho, tenha
aproveitado a viagem ou apenas ocupado uma poltrona no trem da vida assistindo
tudo passar pela janela. A Covid 19, irresponsavelmente mal administrada,
acabou por inverter esse destino em várias famílias quando filhos morreram
antes dos pais, somos agradecidos pelo privilégio de termos tido os nossos
ascendentes caminhando longevamente conosco, beber de sua sabedoria e desfrutar
de suas companhias.
Minha
família fundante se encantou, está se deliciando com caranguejos e fazendo
excursões em velhos DKV’s no eterno, rindo muito e felizes por terem preparado
uma descendência de homens e mulheres de valor, empatia e responsabilidade. Não
há guardiões de memórias, não é preciso, porque nós somos a memória viva
daqueles que nos forjaram.
In memoriam de:
Cantuária e Isabel (Avós) Cláudio (pai) e as tias e tios Luzia,
Maria Tereza, Eudes, Geraldo, José, Luiz, Paulo e Ricardo.
O texto traduz o sentir de várias pessoas. A dor acaba se transformando em saudade. Crer na vida em outro plano é confortante.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
ExcluirOlá, tudo bem?
ResponderExcluirQue texto lindo e com o qual muitos irão se identificar. O luto é sempre sentido de formas diferentes, mas realmente quando perdemos aqueles que deram origem à família, que eram a fonte de experiência e a presença mais marcante nas reuniões familiares, é mais doloroso. Traz uma sensação de fim de ciclo difícil de superar. Mas ela acaba se transformando em saudade e deixando as melhores memórias.
Um abraço!
Obrigado por comentar.
ExcluirSou psicóloga, estudei luta e as fases do luto na facul... Mas ainda é um tema meio tabu pra mim. Não sei lidar muito bem com essas questões. Entretanto tenho aprendido muito com uma especialista na área de tanatologia
ResponderExcluirA psicóloga Ana Costa.
E assim... Nessa aceitação, a gente consegue olhar obras com a temática, com um outro olhar.
Obrigado pelo comentário. Psicólogos especializados em tanatologia são importantes e necessários, parabéns pelo esforço para aprender a lidar bem com essa situação e ajudar outras pessoas.
ExcluirLéo
ResponderExcluirQue boa reflexão sobre estas certezas da vida! Sobre estes vazios deixados pelos nossos entes queridos que se encantaram e foram habitar as dimensões superiores e, sobre os lugares que ocupamos, inexoravelmente, nas memórias e histórias de todas as nossas existências.
Obrigado pelo comentário. O impacto de ver toda uma geração sumir é muito forte.
ResponderExcluir