DOCE INFÂNCIA / POR LEONARDO NÓBREGA
Era um homem velho. Velho e amargo, não
tinha amigos. Fizera muitos pela vida, mas sempre os perdera, afastava qualquer
pessoa que se dissesse amigo, não os reconhecia com tal estatura, dizia que os
verdadeiros amigos ficaram na infância – quando era pequeno muitos eram os
compadres, os parceiros de brincadeiras, os cúmplices dos roubos de frutas dos
quintais. Sim, havia quintais e garotos e frutas roubadas no pé. Esses eram os
seus amigos reais que, agora imaginários, ainda aqueciam seu coração
envelhecido, endurecido e modificado como uma rocha metamórfica, antes
calcário, agora mármore. Porém, esse senhor tinha um plano. Não! Mais que um
plano. Tinha uma obsessão: alimentava, há um punhado de anos, uma volta no
tempo. Uma chance de viver – de forma esquizofrênica – novamente a impossível
infância perdida. Provar mais uma vez os
sabores, os cheiros, os carinhos, as descobertas, as travessuras e até as
incertezas, a falta de liberdade de decidir sobre a vida, os pesadelos
terríveis que acompanhavam o crescimento físico e seus novos desejos, as
questões existenciais com as quais se deparava e nem sabia que era isso, do
tipo: por que nasci? Para sofrer tanto? Melhor seria morrer. Entretanto, a cada
crise renascia mais forte e esquecia as performances dramáticas; na verdade o
problema nunca fora o menino, mas o homem. Esse ser de quem se cobra
equilíbrio, sensatez, postura e comportamento adequados. Essa pessoa adulta que
em nada pode errar, que não deve chorar quando a noite vem e nem perguntar por
que nasceu. Esse era o problema que o acompanhara por toda a vida, se culpava
por não ter se preparado para esse momento, parecia ter ficado preso à saia da
mãe naquela casa da meninice com piso de tábua corrida que o acompanhou desde
que engatinhava, suportou seus primeiros passos, resistiu a suas primeiras
carreiras e o agrediu em seus primeiros tombos, transformando sorrisos em dor e
choro, porém também em aprendizado. Sua obsessão era ter um pouco disso de
volta e, para realizar esse sonho, resolveu que precisava voltar àquela casa de
muro baixo, com jardim florido e quintal frutífero, em uma vila de duas vielas
e rua sem saída. Precisava respirar a poeira do tempo que pairava por lá, tinha
necessidade de pisar outra vez nos paralelepípedos onde se sujava até a medula,
como dizia sua mãe. Enfim decidiu que era preciso comprar aquela que fora a
casa de seus pais, esse era o seu plano, para isso dedicou sua vida.
Guardou todo o dinheiro que pôde. A parte
do salário para esse fim era sagrada, por vezes ficou dias sem almoçar para
economizar e sempre ia à antiga casa para ao menos alegrar o olhar e verificar
se estava à venda, sempre com a esperança que não estivesse; não até o dia em
que o extrato bancário mostrou que tinha o suficiente para fazer uma oferta
irrecusável ao atual dono, herdeiro do anterior, de quem seus pais alugavam a
pequena residência. Finalmente a casa idealizada era sua, finalmente voltava a
caminhar por seu corredor, adentrar nos quartos, chorar na cozinha onde muitas
vezes ajudava a mãe, sorrir na sala de estar onde a pequena TV preto e branco
tantas vezes fora uma máquina do tempo mostrando seriados de ficção e
alegrou-se no quintal onde passava muito do tempo do dia pulando de galho em
galho nas árvores, brincando com os saguis e olhando assustado a grande preguiça
que balançava em um galho da tamarineira do vizinho. Entretanto o que mais lhe
trazia lembranças daquele quintal era o galinheiro, sumido por detrás das
árvores, no fundo de um quintal que, para a criança, mais parecia um sítio, galinheiro
de onde catava ovos e de onde saíam galinhas que eram abatidas pela própria
mãe, de quem muito cedo herdou a técnica de dependurar as aves e sangrar seus
pescoços. Com pouco tempo de “estágio” assumiu a função da assoberbada mãe que,
além de cuidar da casa, ainda ajudava nos gastos diários do lar com vendas
porta a porta. Esperava ansiosamente o dia de comer galinha, se sentia poderoso
por poder ter essa responsabilidade de adulto e, mais ainda, por ajudar a mãe
já tão ocupada.
Parado no limiar do puxadinho do quintal,
observou demoradamente o antigo abrigo de aves onde seu dedo da morte escolhia
quem vivia e quem ia para a panela. No começo ele não gostava, preferia que a
mãe escolhesse, entretanto, com o tempo, se acostumou com a responsabilidade em
todo o processo, da escolha à panela, passando por sangrar e depenar as aves
com água fervente. Caminhou devagar até a construção metade tijolos, metade
tela de arame, caminhou lento como quem não quer chegar ou quem quer gozar do
momento o máximo possível. Ficou surpreso de como, depois de tantos anos,
aquilo ainda estava de pé e mais: conservado, embora não fosse mais um
galinheiro. Ele agora estava em um pequeno armazém, mas de resto estava igual. Até
o piso de concreto sugerido por ele ao pai antes da mudança continuava lá, com
algumas rachaduras, é claro, mas ainda resistindo. Ele lembrou de quando o piso
era areia e as galinhas comiam bicando do chão, mas uma semana antes da mudança
o garoto conseguiu convencer o pai de que concretar o piso seria uma maneira de
agradecer ao proprietário por ter sido bondoso com eles até comprarem a própria
casa, descontando juros por aluguéis atrasados e outros imprevistos. Assim o
que era areia virou cimento, aquele que ainda estava lá; sob seus pés. Não
havia mais galinhas no cercado, eram outros tempos, os frangos agora vinham dos
supermercados prontos para a panela ou até para comer, e o que fora galinheiro
agora era um depósito de ferramentas, o que era perfeito para o momento atual.
Arregaçou as mangas, apanhou uma marreta
e atacou o piso de concreto, cada lasca de cimento que voava aumentava a
satisfação dele. Quando o sol declinou e o céu foi tingido de variações da cor
vermelha não havia mais piso a quebrar, então, o homem velho e amargo retirou
os escombros como se removesse o entulho de dentro de si mesmo, um entulho
muito antigo e consolidado difícil de remover, mas que a cada porção vomitada
aliviava su’alma e o enchia de crescente satisfação. Retirou cerimoniosamente o
derradeiro torrão, olhou para o piso de areia com crescente saudade e
rejuvenescida força. Estava tão agitado e energeticamente motivado que, mesmo
após um dia inteiro quebrando o piso não estava fatigado, não sentia dores, o
que seria normal, ou desânimo, pois havia esperado muito por aquele dia. Bebeu
mais um copo d’água e, trocando a marreta pela pá, começou o segundo ato de sua
estranha ópera-bufa, cavar.
A areia macia era um lenitivo, depois de ter quebrado concreto era como cortar pudim com faca afiada. A noite já estava gasta quando ele concluiu seu trabalho de arqueólogo. Com a escavação pronta o homem rancoroso, que nunca ria, sorriu, primeiro de forma contida, quase internamente, depois generosamente e, por fim, já gargalhava, merecia, estava diante do que perseguiu obsessivamente por toda a vida, poderia voltar a ser feliz. Estava entre amigos. Os amigos de infância estavam ali, naquelas quatro covas, e o melhor: ainda tinham a mesma idade com que ele os deixou e vestiam as mesmas roupas da época. Diferentes dele, não cresceram, não sofreram a idade adulta, ele tinha-lhes salvado disso. Entretanto ainda faltava algo. Correu até o carro e de lá trouxe uma caixa plástica com brinquedos que foi dispondo organizadamente frente a cada esqueleto; os brinquedos prediletos de cada amigo, que ele guardara carinhosamente por todos esses anos, e para ele a faca usada para degolar galinhas, seu brinquedo preferido. Agora tudo estava completo e em paz. Cantou uma canção infantil, brincou com seus amigos, riu muito, depois deitou-se na quinta cova escavada e, com a agilidade do menino abatedor de frangos, cortou a própria garganta. Em uma última contração do rosto o homem amargo ainda conseguiu sorrir, estava em paz, estava entre amigos e sabia: nunca se deixariam.
Achei tudo bem intrigante, profundo e impactante da forma como discorreu sobre. Principalmente, sobre a parte de não ter mais um plano, mas o fato de que tinha uma obsessão.
ResponderExcluirEssa de alimentar uma chance de viver, novamente, de forma esquizofrênica, a impossível infância perdida."
Oi, Débora. Obrigado pelo seu comentário. Não tinha pensado nisso, mas acho que realmente ele foi de uma neurose obsessiva para a esquizofrenia. Embora já fosse uma criança psicopata (o mistério é por que parou de matar). Abraço.
ExcluirOi, Débora. Obrigado pelo seu comentário. Não tinha pensado nisso, mas acho que realmente ele foi de uma neurose obsessiva para a esquizofrenia. Embora já fosse uma criança psicopata (o mistério é por que parou de matar). Abraço.
ExcluirQue lindo 😍 porém triste esse final, apesar do riso e creio eu sentimento de paz do homem amargo foi um tanto doloroso morrer assim não?
ResponderExcluirOlá, obrigado pelo comentário. É triste, mas, para ele não, era tudo o que almejava na vida. Abraço.
ExcluirMais uma vez os textos do caro Leonardo me deixando completamente absorta...
ResponderExcluirQuem dera voltar a infância, revisitar as memórias de maneira palpável. ..
Tbm tenho minhas lembranças com galinhas no quintal ..
Oi, tudo bem? Que texto mais intenso. Conforme vamos lendo lembramos da nossa própria infância, adolescência, e tudo o que vivemos ao longo da vida. O que vivenciamos influencia diretamente em quem nos tornamos. Uma pena que algumas pessoas olham para trás e olham para a própria vida com certa amargura. Um abraço, Érika =^.^=
ResponderExcluirEu adorei o conto, gostei muito da performance e da escrita. Gosto quando um idoso rememora, porque brinca com as noções da própria memória e dos sentidos que ela traz. Sensacional!
ResponderExcluirQue incrível! Acho super interessante quando a gente tem um protagonista de idade! Acaba que a gente se emociona também, porque vai falando sobre o percalço da vida. Adorei a escrita!
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