ÀS VEZES EU CANSO / MARINA COLASANTI
Quando é que um assunto se esgota?
Quando se disse tudo o que havia para dizer? Ou quando foi entendido por tudo o
que disse?
Gostaria que a resposta fosse a
primeira. Mas a evidência me prova que é a segunda.
“Estamos organizando um seminário sobre
a mulher”, me telefona um professor, de Belo Horizonte. “Gostaríamos que você
viesse fazer uma palestra.” Um cansaço avalassador me toma. Depois de vinte
anos falando sobre a questão da mulher, tenho às vezes – como agora, atendendo
ao telefonema – a sensação de que não há mais nada a dizer. Tudo foi explicado
tão clara e repetidamente, que qualquer palavra, me parece, serviria apenas para
despejar chuva sobre o que já está molhado.
Parece a mim, que falo e que me engano,
que ouço minhas próprias palavras mas que, sem possibilidades audiométricas,
não meço a capacidade auditiva do país, e me iludo de que, mesmo se as coisas frequentemente
entram por um ouvido e saem pelo outro, passam – pelo menos passam – pela
cabeça.
Parece a mim, mas por breve tempo, até
que uma voz ou uma mão me puxam para realidade. Como ali, sentada ao redor de
uma grande mesa onde até então estávamos tão fraternos, quando a mão do amigo
segura firme meu braço e ele exige: “Quero ouvir de você, Marina, o que é
afinal o feminismo?!”.
Não é uma pergunta, é um repto. Ele
jogou a luva, quer um duelo, valendo quase todas as armas. Não adianta
negar-me, tentar devolver a luva com bom humor. Ele me segura pelo braço, e
insiste. Está certo de ter todas as armas na mão, de saber tudo. Quer que eu
fale, para poder me derrubar a golpes de frases. Para poder demonstrar que
estou errada, que o feminismo é um grande equívoco, as mulheres estavam melhor
onde estavam. E para poder, depois, dormir tranquilo.
Para deleite das circunstâncias, quase
todos os homens, o duelo começa. Duelo? Que nada. É o meu renovado espanto que
começa. De dentro do bolso, de dentro das algibeiras, o amigo, os amigos, vão tirando
argumentos velhos e furados, que eu acreditava soterrados nas névoas de um
passado remoto. Vão revelando – junto com o medo, o ressentimento e o machismo
em estado puro – seu total desconhecimento.
A coisa se passa como se alguém quisesse
discutir comunismo sem nunca ter lido Marx, tendo ouvido vagamente falar de
Engels, e achando que esse negócio de mais-valia é papo furado.
Meus amigos, e a amiga que ali está, não
sabem nada, nunca leram nada, não tomaram conhecimento enorme do trabalho
teórico e prático desenvolvido ao longo de todos esses anos pelos movimentos
das mulheres ou pelos estudiosos em questão. Se eu perguntasse sobre política,
saberiam responder acertadamente. Se eu quisesse saber de economia, poderiam
explicar nos mínimos detalhes. Mas, em se tratando de feminismo, passaram ao
largo.
Para eles, o feminismo não parece ser
uma questão social determinante, “a maior revolução da nossa era”, como já foi
dito infinita vezes. Não é um movimento de mutação da humanidade que exige, no
mínimo, nossa atenção. É um assunto pessoal, doméstico. E, como tal, muito mais
assustador.
Melhor então é não ler, não saber, fazer
de conta que é uma grande bobagem, fechar os olhos e tocar de ouvido. Um ouvido
torto, que só se ouve o que quer, e não se deixa “contaminar”.
“Por que as pessoas ficam tão nervosas quando
se fala nesse assunto?”, perguntava a dona da casa depois da contagem de mortos
e feridos. E ela mesma acrescentou. “Porque mexe com a vida da gente.”
Meus amigos são belos amigos, e eu gosto
deles. Meus amigos não são uma exceção. Porque estavam mais perto de mim
acreditei que talvez tivessem ouvido algo mais, porque gostam de mim pensei que
talvez tivessem querido ouvir. Mas eles gostam de mim apesar do meu feminismo,
e são exatamente iguais à maioria, à quase totalidade dos brasileiros.
Há anos fazendo chover, e pouco está
molhado. Os argumentos, as frases, toda uma ideologia que nos esforçamos tanto
para tornar conhecida, não são gastos, não soam como repetição, pouco forma
ouvidos. Por que será? Porque não havia quem escutasse? Porque não usamos os
veículos adequados? Porque dissemos coisas difíceis de entender? Certamente não.
É porque dizíamos coisas que não se podem ouvir sem compromisso, coisas de uma
tal justeza que, se escutadas, se tornam irremediavelmente modificadoras. E diante
de coisas assim, a única defesa é a surdez.
Para quem dizíamos essas coisas? Para
uma sociedade solidamente machista e reacionária, uma sociedade de feitores e
sinhás-moças, em que a democracia é um conceito vago e mal assimilado. A esta
sociedade, que tem se recusado às modificações sociais mais gritantemente
necessárias, pedíamos que mudasse sua estrutura de base, que revisasse não só
as relações entre homens e mulheres, mas a própria essência de masculinidade e
feminilidade. Era pretender demais.
Eu e outras colegas feministas ficamos
cansadas, às vezes, mas não temos esse direito. E não teremos enquanto o
desconhecimento causado pelo medo continuar tão grande. “Estamos fazendo uma
matéria sobre os livros que tratam da questão feminina”, me telefona o repórter
de uma grande revista. “A senhora acha que esses livros adiantam alguma coisa?”
Talvez ela devesse perguntar ao Gutenberg sobre o valor da palavra imprensa.
E ainda nesse início de ano, para que eu
não pensasse que tão perto do século XXI talvez estivéssemos também mais perto
do entendimento, fui surpreendida com um artigo do Jornal de Brasília,
intitulado “Reforma Pode Atingir o CNDM”.
A matéria falava das dificuldades enfrentadas
pelo Presidente Sarney para extinguir algumas autarquias, e como alguns Conselhos
são considerados pelo próprio presidente como “excessivos num País que tem a pretensão
de se modernizar”. Entre os passíveis de extinção estavam o Conselho Nacional
de Trânsito, o Conselho Superior de Minas, e o Conselho de Defesa da Mulher.
“Por que um Conselho de Defesa da
Mulher?”, pergunta no artigo uma voz sem identificação, vagamente atribuída a
um ‘conselheiro’ do presidente. “Daqui a pouco vão querer um Conselho de Defesa
dos Velhos, Conselho de Defesa das Crianças, dos Negros, e outros.”
Aí estão, de novo, o medo e o
desconhecimento. Não é à toa que erram o nome do Conselho – que na realidade se
chama Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Preferem achar que estamos
apenas nos defendendo, em vez de reconhecer que estamos exigindo nossos
direitos. Não é à toa que ignoram a importância de tudo o que o Conselho tem
realizado. A ignorância serve para falsificar nossa imagem. E a falsificação da
nossa imagem serve para pedir nossa extinção, aniquilar nosso trabalho.
Sim, vou fazer a conferência em Belo
Horizonte. E se houver no auditório alguém que já sabe das coisas, alguém que
já ouviu tudo muitas vezes, que abra o guarda-chuva e me perdoe. Pois a nós
cabe mesmo é falar mais, fazer chover aos cântaros, até que tudo esteja, enfim,
encharcado.
(Marina Colasanti, Aqui entre nós, Editora Rocco,
1988. Texto publicado originalmente na edição especial do Caderno Cultural, da
Imprensa Nacional, em comemoração ao 8 de maio, Dia Internacional da Mulher,
solicitado pela CNDM – Conselho Nacional Dos Direitos Da Mulher)
Oi Lilian, sua linda, tudo bem?
ResponderExcluirAndo muito sensível, mais do que já sou. Por isso confesso que chorei quando li. Pois o que ela falou se aplica a tantas outras coisas também. E eu estão tão cansada. Pois apesar de tanto esforço, nada parece mudar, só piora, ou se renova. Mas fiquei feliz com a atitude dela no final, que demonstra qual deve ser o caminho a seguir: não podemos esmorecer ou desistir.
bjs.
cila.
Perfeito!
ExcluirObrigada pela interação
Oi Lilian.
ResponderExcluirQue texto maravilhoso de ler. Nós mulheres não estávamos melhor onde estávamos. Por isso estamos lutando todos os dias para conquistar vários objetivos e eliminar a discriminação contra as mulheres. Eu acho isso um puro machismo, mas confesso que bater na mesma tecla e ter que provar todos dias que somos capazes de seguir caminhos independentes, enfrentando barreiras e dificuldades na mesma maneira ou melhor que os homens bate um cansaço. Mas não podemos desistir, tudo que conquistamos precisa precisa ser encarado como instrumento para conquistar cada vez mais.
Bjos
Oi, tudo bem?
ResponderExcluirQue texto incrível. Eu nunca tinha lido nada da Marina Colasanti, mas adorei ler as palavras dela sobre um tema tão importante. Realmente é triste pensar que ela falou tanto tempo sobre feminismo e percebeu que pouco tinha mudado. E pior ainda foi ver a data que esse texto foi publicado e pensar que lá se vão mais de 30 anos e ainda vivemos em uma sociedade machista, preconceituosa e cada vez mais retrógrada. Uma pena que esse texto ainda seja tão atual, mas acredito que isso o torna ainda mais importante.
Beijos!
Gostei bastante do artigo, muito bom mesmo! Estou amando ler seus artigos e compartilhar com os amigos!
ResponderExcluirMeu Blog: Ganhadores do Amazonas da Sorte