Doze poemas de Hilda Hilst sobre finitude
“E
se eu ficasse eterna?”
Hilda
Hilst
A sociedade ocidental não cultivou o
hábito de falar sobre a finitude, ou seja, a morte. O tema se tornou um tabu
causador de medo e angústia podendo resultar nos vivos, depressão, tristeza profunda,
automutilação, suicídio, etc. diferente do que acontece no México, em que a
morte é celebrada com a mesma alegria da vida, nos vemos emaranhados de dor,
medo e peso frente a finitude.
O fato é que a única certeza é que
nascemos para morrer. Para Jung “o medo profundo busca um recurso para a
elaboração da proximidade da morte”. Suportamos a dor da morte, mas não a
tornamos assunto cultural. Em entrevista, Saramago (2008)
Porque é da morte que sempre temos que falar. As pessoas morrem, mas tratamos a morte como se fosse um episódio a mais na vida, nós a banalizamos, e não deveria ser assim. (…) O que acontece é que pretender falar da vida evitando a morte, como se ela não existisse, é uma mentira. O que eu pretendo é afrontar-me com a morte, não com a minha morte, não com o final da minha vida, o desastre que vai ser, a dor que sentirão quando me forem ver: coitadinho, morreu. Não é isso. Trata-se do fato em si da morte, de que a gente tem que morrer e o quanto isso ilumina ou, pelo contrário, escurece a própria vida que se leva. (...) Não há nada de mórbido no que estou a dizer, nada, não há nenhuma morbidez. Não gosto de falar da morte, mas ela está aí. O que eu quero é afrontar-me com ela, e que aquilo que eu escreva tenha essa referência, que não é a expressão definitiva do pessimismo, não. (...) O que pretendo, sim, é evitar que se esqueça que ela existe, que é o que se costuma fazer. Tentamos apagar a morte. As pessoas já não mais morrem, simplesmente desaparecem.
Mas, assim como o amor, a morte é um tema
recorrente na literatura e, principalmente, na poesia. Quer seja como um nível
transcendental e subjetivo a ser alcançado como resultado da vida que leva à
questionamentos internos e existenciais; quer seja como eterno ponto final, em
que o fim é o fim e nada se transforma ou ‘volta ao pó’ ou a visão espiritual, sobrenatural,
religiosa, científica.
Das várias formas de entender e vivenciar
a finitude, escolhemos o olhar e sensibilidade da autora Hilda Hilst, em Da morte. Odes mínimas (1980). Livro Da
Poesia, Companhia das Letras, 581 páginas, 2017.
By a Vida e Morte, Gustav Klimt
I
Te batizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não?
II
Demora-te sobre a minha hora.
Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena
Duas fortes mulheres
Na sua dura hora.
Que me tomes sem pena
Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.
E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.
By Egon Schiele - Morte e Donzela
VI
Ferrugem esboçada
Perfil sem dracma
Crista pontuda
No timbre liso
Um oco insuspeitado
Na planície
Um cisco, um nada
À tona das águas
Brevíssima contração
Te reconheço, amada.
VII
Perderás de mim
Todas as horas
Porque só me tomarás
A uma determinada hora.
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferida
De malassombros, de gozo
Morte, imagina-te.
XI
Levarás contigo
Meus olhos tão velhos
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?
Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces
Coisas tão antigas.
Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-o comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.
E minha voz e cantiga?
Meu verso, meu dom
De poesia, sortilégio, vida?
Ah, leva-os contigo.
Por mim.
XIX
Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro
Te tomaria
Úmida, tênue
E então descansarias
Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono
Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.
Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens
Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.
XXI
Por que vens ao meio-dia
De cornudara galopando conchas
De cornetim à frente da minha casa
Corta-capim, corta-águas?
Descansa. Faz entrepausa.
Colhe matiz, faz nuança.
Porque até no que não vejo
Te vejo. Corpo de ar e marfim
Boca, palato.
Sempre colada, sempre colada.
XXIII
Porque conheço dos humanos
Cara, crueza,
Te batizo Ventura
Rosto de ninguém
Morte- ventura
Quando é que vem?
Porque viver na terra
É sangrar sem conhecer
Te batizo Prisma, Púrpura
Rosto de ninguém
Unguento
Duna
Quando é que vem?
Porque o corpo
É tão mais vivo quando morto
Te batizo riso
Rosto de ninguém
Sonido
Altura
Quando é que vem?
XXV
Onde nasceste, morte?
Que cores, ocaso e monte?
E os pulsos que te arrancam
Do mais escuro. De carne?
Te alimentavas
De amêndoas negras? Havia águas?
Vagidos, choros,
Empelicada como nasce a vida?
Só querias, tocavas?
E sendo criança
Não tocavas em tudo
E o instante se fazia
Insipidez e nada?
E velhíssima agora
Conhecendo todos os tatos
Agonia, terror e pasmo
Saciada
Por que não partes?
XXIX
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó
Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
XXXII
Por que me fiz poeta?
Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
De tudo o que vejo.
No mais que perfeito
No veio, no gozo
Colada entre eu e o outro.
No fosso
No nó de um ínfimo laço
No hausto
No fogo, na minha hora fria.
Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana ideia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.
XXXVII
Não compreendo. Apenas
Tento
Somar meu corpo
A teu corpo negro
Minhas águas
A teu remo
E cascos, os meus,
E luzes de um dia
E ânus, regaço
Somar
A teu matiz cobreado
Tua garra fria.
Não compreendo. Apenas
Tento
(Suor, subida, cascalho
Seca)
Somar teu corpo
A meu pensamento.
Oiii, Lilian, quanta grandeza de obra, fiquei perdidamente apaixonada e com toda certeza vou pesquisar mais poemas, já conhecia a Hilda e sempre me encanto pelas suas palavras, ótimo post.
ResponderExcluirBeijinhos
Realmente, a morte é um tabu para muitos. Não conhecia esse livro da Hilda Hilst, então todos os poemas são novidades para mim e alguns deles bem reflexivos sobre essa tal finitude, com destaque para XXIII, pois quem é que sabe a hora que ela vem?! Um mistério. Quero ler esse livro.
ResponderExcluirAbraços.
Olá, tudo bem? Caramba, essa parece ser uma obra e tanto! Ainda não conhecia a autora nem suas poesias, mas gostei muito por serem incríveis e tratarem de um tema tabu para muitas pessoas.
ResponderExcluirBeijos,
Duas Livreiras
Oi, realmente a nossa relação com a morte não é das mais tranquilas; muito obrigada por me permitir ler um pouquinho da produção da Hilda, preciso logo dar um jeito de aquirir suas obras.
ResponderExcluirOiii Lilian
ResponderExcluirCom certeza acho que o tema morte, seja na poesia ou na literatura em geral, é sempre aquele tipo de tema que de uma forma ou outra causa um impacto. Deve ser porque como diz minha vó, é aquele tipo de certeza que todos nós temos e tb pelo fato de ser sempre um mistério e dai atrai tantos autores e poetas a refletir/questionar e expor o assunto. Nunca li nada da Hilda, mas adorei o que pude conhecer agora através deste post.
Beijos
www.derepentenoultimolivro.com
Olá!
ResponderExcluirAdorei este post, esta obra deve ser incrivel! Realmente aceitamos a morte mas não conversamos sobre ela naturalmente. Adorei os trechos destacados que me fizeram ficar curiosa para ler a obra. Adorei!
Olá
ResponderExcluirNo lado ocidental pisamos mais nas temáticas "terrenas", como, fama, sucessp, estrelismo e tudo que gira em torno dessa órbita porque somos ensinados ao que é visível e não o que não pode acabar com tudo isso e acabamos nos perdendo que tudo é finito e termina ou precocemente ou não. Sorte de quem é mais tardiamente.
Beijos e obrigada por trazer essa lindíssima parcela do trabalho da Hilda.
Olaaaaa!!!
ResponderExcluirNossa Lilian, estou impressionada com a profundidade e a força dessas palavras. A morte é algo extremamente delicado, principalmente para mim...É uma pena que infelizmente eu não goste tanto de poesias
beijos
Olá!
ResponderExcluirNão conhecia os poemas da Hilda. Quanta reflexão podemos fazer através de suas palavras cheias de sensibilidade para um tema que realmente a maioria prefere deixar de lado para não trazer "agouro".
Bjim!
Tammy
Olá, tudo bem? De fato concordo e MUITO! Aprendendo e me introduzindo um pouco mais na cultura Oriental, vejo que aqui no Ocidente o tema finitude é quase um assunto místico! Ai de comentar ou debater opiniões, que as pessoas não gostam! Adorei a visão da Hilda sobre o assunto, e apesar de não me aprofundar muito em poemas e poesias, adorei os escolhidos!
ResponderExcluirBeijos,
https://diariasleituras.blogspot.com
Oie, tudo bem?
ResponderExcluirEu não sou muito fã de poemas, não é um gênero que me agrada muito mas parece um livro muito interessante para fãs do gênero! Que bom que você gostou da leitura!
Beijos,
Ana | Entre Páginas
www.entrepaginas.com.br