A BOLSA ALJOFARADA DE UMA SENHORA - 49 CONTOS DE TENNESSEE WILLIAMS
In this March 21, 1980 photo, playwright Tennessee Williams poses for a portrait in his apartment in the Manhattan borough of New York. (MARTY REICHENTHAL/AP)
Varando o frio de um fim de tarde de
novembro, um homenzinho se arrastava por uma viela com um saco enorme e bojudo
nos ombros. Movia-se com aquela clandestinidade apreensiva, semi-inconsciente,
característica dos velhos e alquebrados vira-latas que sabem que só a cautela
pode lhes proteger a vida contra os inimigos. A profissão que ele seguia não
era ilegítima; não tinha por que temer ser molestado pelos guardiães da lei. E,
todavia, seus modos pareciam indicar sentimento de culpa e receio de detenção. Mantinha-se
próximo aos muros das garagens, como se desejando ocultar-se em suas sombras.
Contornava com grande margem de segurança os círculos de radiação projetados
pelas esporádicas luzes da viela. Sempre que cruzava com outros frequentadores
de becos e vielas, baixava a cabeça sem olhar para o rosto deles. Não possuía a
aspereza e o atrevimento comuns à maioria de sua classe. Oprimia-o um
sentimento quase maníaco de inferioridade e vergonha.
Era catador de lixo havia quinze anos.
Todos os dias percorria uma rota invariável pelas vielas da mais nobre zona
residencial da cidade, sondando o conteúdo das lixeiras em busca de sapatos
velhos, objetos de metal quebrados ou enferrujados, trouxas de roupas manchadas
ou esfarrapadas. Os frutos de sua coleta ele vendia por uma ninharia a
ferros-velhos que faziam uso desse tipo de bugiganga. Seria uma ocupação
deprimente e enfadonha se ao longo daqueles quinze anos ele não fosse amparado
pela esperança de um dia encontrar algo de grande valor acidentalmente jogado no
lixo. Um anel ou um broche de diamantes, um relógio, um par de brincos, alguma
coisa pela qual pudesse receber centenas de dólares, garantindo a realização de
seus sonhos de mendigo.
Ocasiões houvera em que ele ficara com o
coração aos pulos simplesmente por ter vislumbrado, por sobre a borda de uma
lixeira, o brilho intenso de um caco de vidro ou de uma folha de estanho
dourada. E embora até então não tivesse encontrado nada de mais valioso que
fragmentos de metal, couro e pano, não perdia as esperanças.
Tinha por norma inviolável sempre
completar sua rota. Portanto, embora em seu saco já não coubesse mais nada, não
regressaria antes de percorrer o derradeiro quarteirão daquela última viela.
Com os pés e as costas doloridos, avançava penosamente de lixeira em lixeira,
às vezes parando para trocar um refugo que tinha no saco por outro de valor um
pouco maior. Chegou por fim a uma lixeira cujo conteúdo era encimado por uma
caixa de chapeleiro cor de malva, cheia de papel de embrulho. Um impulso o fez
puxar a caixa para a borda da lixeira, a fim de inspecioná-la mais de perto. O
som de algo pesado deslizando sob o papel atraiu sua atenção. Ele retirou o
papel e estudou intensamente o interior da caixa. Viu ali uma daquelas coisas
que vinha buscando havia quinze anos. Era a bolsa aljofarada de uma senhora.
Por um momento a avidez foi mais forte que
a cautela. Com dedos trêmulos, pegou a bolsa e começou a retirá-la de seu
esconderijo. Nesse instante, porém uma porta bateu, e ele mais que depressa
apanhou o salto de um sapato velho e fingiu examiná-lo, enquanto o coração
martelava-lhe o peito e a cabeça girava de excitação. A bolsa aljofarada de uma
senhora!
A porta tornou a bater. Ele largou o salto
de sapato, curvou-se ainda mais sobre a lata de lixo. Introduziu novamente a
mão na caixa e encontrou a bolsa. Passou os dedos por sua superfície macia e
fria com a delicadeza com que um precavido Don Juan acaricia uma mulher à qual
ainda não está certo de haver conquistado. Perscrutou ainda uma vez os fundos
das casas que tinha diante de si a fim de certificar-se de que ninguém o
observava; então, rápido como um relâmpago, retirou a bolsa da caixa e enfiou-a
no bolso do casaco. Pronto. O tesouro era seu.
Com elaborada afetação de indiferença,
colocou o saco sobre o ombro e, a passos vagarosos, sem trair exteriormente
nenhum sinal de que havia encontrado no depósito alguma coisa de mais
significativo que a caixa de chapeleiro e o velho salto de sapato, retomou a
caminhada. No bolso, porém, sua mão não largava a bolsa aljofarada; segurava-a
com firmeza, como se apenas por meio da pressão cortante das minúsculas e frias
pérolas contra a carne quente da palma da mão ele pudesse ser levado a
acreditar em sua realidade. Com os dedos, encontrou a abertura da bolsa.
Introduziu-os em seu interior felpudo. Apalpou as moedas e notas que ela
continha. Estava recheada delas. Visões encantadoras dos prazeres que esse
dinheiro poderia proporcionar-lhe passaram como num caleidoscópio diante de
seus olhos. Viu a si mesmo em trajes vistosos, jantando pratos saborosos,
gozando por algum tempo os luxos e esplendores da vida com os quais sonhara
avidamente durante tantos anos.
Antes de chegar ao fim da viela, tornou a
lançar um olhar para trás. E na curta duração desse olhar todos os seus sonhos
extasiados fizeram-se em pedaços. Parado junto à lata de lixo em que a bolsa
fora encontrada, via-se um rapaz alto com uniforme de chofer. Seus olhos se
encontraram. E conquanto permanecesse completamente indiferente, a fisionomia
do chofer gerou pânico no catador de lixo, que teve a impressão de ler nela uma
acusação fria e severa. O sumiço da bolsa, concluiu, fora percebido; tinham-na
rastreado até a lixeira. O chofer havia sido enviado pela patroa para
resgatá-la. Com toda a probabilidade, sabia que a bolsa fora recolhida pelo
catador de lixo. A polícia seria avisada. E, agora que se tornara um
transgressor de suas leis, o mundo que ele desde sempre temera de forma insana
não tardaria a enlaçá-lo com suas mãos frias e cruéis. Tal pensamento o deixou
nauseado de terror; frenético qual um animalzinho capturado numa armadilha.
Num átimo, ocorreu-lhe à mente perturbada
que talvez ainda pudesse salvar a pele devolvendo a bolsa à sua dona. Sem
pensar duas vezes, precipitou-se para fora da viela e dobrou a esquina. Seguiu
pela calçada até chegar a uma elegante residência de pedras cinza-esverdeadas,
a qual identificou como sendo aquela em cuja lixeira havia encontrado a bolsa.
Esbaforido de medo e reverência, atravessou correndo o passeio interno da casa
e galgou os degraus que conduziam às portas gradeadas. Localizou a campainha e
pressionou-a de leve. Após alguns instantes, as portas se abriram para um
vestíbulo profusamente iluminado; diante de seus olhos ofuscados havia uma moça
trajando um uniforme preto e branco de corte austero.
Mal erguendo os olhos para fitar-lhe o
rosto, com a humildade com que um sacerdote alçaria sua oferenda ao altar de um
deus colérico, ele estendeu a bolsa e murmurou:
"Encontrei isso no lixo."
Ao olhar para o objeto que lhe era assim
oferecido, a empregada reconheceu uma das bolsas da dona da casa. Compreendeu
que fora jogada na lixeira com a caixa de chapeleiro que ela própria havia
retirado do quarto da patroa naquela manhã. Receou, porém, ser demitida por
desatenção, caso relatasse as verdadeiras circunstâncias de seu desaparecimento
e a maneira como fora reavida. Assim, ao levá-la para a patroa, que naquele
momento se vestia para um jantar, ela disse:
"Senhora Ferrabye, encontrei isso em
cima do piano."
Sem desviar os olhos do espelho da
penteadeira diante do qual arrumava o cabelo, a mulher respondeu:
"Guarde na minha gaveta, Hilda."
Poucos minutos depois, chegou à casa o
entregador de uma modista, trazendo consigo um pacote havia muito aguardado. A
empregada levou o pacote até o quarto, colocou-o em cima da cama e entregou a
conta para a patroa. Totalizava várias centenas de dólares. A mulher abriu a
bolsa aljofarada. Tirou a soma devida - praticamente tudo o que a bolsa
continha - e deu o dinheiro para a empregada. Depois levantou a tampa da caixa
e desembrulhou da embalagem de papel de seda um xale feito de tecido branco,
diáfano, salpicado de pedacinhos brilhantes de metal. Segurou-o por um momento
contra a luz e procedeu a uma apreciação crítica dessa sua mais recente
aquisição. Então largou o xale sobre a cama, desfigurando a refinada beleza do
rosto com uma careta de repugnância.
"Não sei onde eu estava com a cabeça
quando comprei isso. Nunca vou ter coragem de usar essa coisa ridícula!"
Voltando-se para o espelho e pondo-se
novamente a alisar as mechas douradas dos cabelos, aquele seu aborrecimento
momentâneo passou e a mulher reassumiu a expressão de vaidade sorridente que
tinha antes.
(Publicado em 1930)
Maravilhoso!Não há o que comentar
ResponderExcluirBoas energias,paz,saúde,muito amor,uma semana plena!
Mari
Owm que texto lindo.
ResponderExcluirAs belas reflexões que a vida nos ensina são sempre marcantes e cheias de luz. Não conhecia o autor, mas certamente vou atras dessa obra. Me encantei com a simplicidade da escrita e a intensidade das mensagens.
Obrigada por compartilhar essa obra prima conosco Lilian
<3
mlr, tu acredita que eu nunca tinha lido Tennessee ainda? apesar de não faltar vontade... foi bom ter uma prévia dele por aqui <3
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirque texto profundo e intenso, na mesma proporcionalidade de simplicidade. Achei muito interessante.
Beijos
Olá
ResponderExcluirmuito bonito o texto. Nunca tinha lido antes ou ouvido falar mas adorei conhecer por aqui
beijos
http://www.prismaliterario.com.br/