Eu sei, mas não devia - de Marina Colasanti
The Sharpest Knife by Nickie Zimov
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não
devia.
A gente se acostuma a morar em
apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E,
porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não
olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não
abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que
se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está
atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A
comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é
noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado
sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a
ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números
para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações
de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da
guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia
inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que
deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E
a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que
as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver
cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a
comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas
fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro
tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água
potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a
não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos
cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para
não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor
aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente
senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada,
a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a
gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito
o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono
atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma
para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar,
se perde de si mesma.
Sobre a autora
Marina
Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e
desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas
e histórias infantis. Recebeu o Prêmio
Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros
escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós,
Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher,
Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também,
para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em
todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
(O texto acima foi extraído do livro
"Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág.
09.)
Fonte
- Releituras
Eu venho acompanhando o blog e sempre me surpreendo com as poesias e poemas que você traz.
ResponderExcluirDesta vez, a mensagem foi tão direta e tão verdadeira, que me obriguei a seguir o blog de uma vez.
Sério, eu devorei essa texto e me senti dentro dele, vivendo essa vida - isso se já não estiver vivendo.
Parabéns!
Nossa tão verdade e tão atual na nossa vida cotidiana. É mais que se acomodar é se acostumar sem para parar refletir e reflexão foi o que ela fez ao escrever essa crônica e é o que está fazendo comigo rs
ResponderExcluirLinda a mensagem! Devemos aprender a valorizar nossos dias e as oportunidades que com eles vem!
ResponderExcluirUau! Que leitura gostosa e ao mesmo tempo aflitiva de tão verdadeira. Eu ainda não me acostumei com muita coisa e acredito que vai ser difícil me acostumar. Amo Marina Colassanti. Vou mostrar esse texto a um amigo que também vai lê-lo com grande sensibilidade. Amei muita coisa o seu blog! Parabéns!
ResponderExcluirOlá! Lindo texto! Algumas vezes vamos nos acostumando e deixamos a vida passar. É normal ficarmos nesse marasmo, mas é legal sacudi um pouco, sempre questionar. Beijos!
ResponderExcluirOlá, não conhecia a autora e nem seu livro, mas adorei esse trecho que você trouxe ele tem uma reflexão profunda sobre tudo que acabamos tendo como "normal" e nos acostumamos.
ResponderExcluirMeu Mundo, Meu Estilo
Olá !!! Muito bonito seu texto e a forma de abordar esses assuntos.
ResponderExcluirMuitas vezes convivemos com situações no cotidiano e nem nos damos conta.
As vezes é preciso um momento para refletir e ver o que realmente é preciso mudar !!!
sucesso, bjooooo
salve lorena candomblé ent tu curtiu o texto
ExcluirQue texto. Reflete muito a realidade de muitos que não vivem, mas se acostuma. Adorei demais e não conhecia o livro, nem o texto. Fiquei bem curiosa para ler mais da autora. Adorei!
ResponderExcluirBeijos,
http://diariasleituras.blogspot.com.br
Que texto maravilhoso! Muitas vezes o fato de se acomodar é por ser mais fácil do que querer mudar ou o fato de mudar cause um certo medo em algumas pessoas (quase todas). Adorei esse trecho do livro.
ResponderExcluirEu simplesmente amei esse texto. Ele é tão verdadeiro e tão atual que é impossível não se identificar. Acho que o mundo precisa ler isso e deixar de lado todo esse costume e começar a tentar viver algo diferente todos os dias.
ResponderExcluirObrigada por me apresentar esse texto maravilhoso.
Beijos
Olá,
ResponderExcluirAdorei o texto. Realmente vivemos muito acomodados, nos acostumando a tudo e aprendendo a não reclamar do que nos incomoda porque "vamos nos acostumar". O texto é muito atual e reflete bem o que vivemos hoje, infelizmente. Dá pra refletir sobre muitas coisas ao lê-lo.
Beijos
Blog Relicário de Papel
estava aqui pensando que já conhecia algumas partes desse texto, mas não conseguia lembrar de onde - e acabei achando que deveria ter lido algo parecido e tal. Quando vi a referencia no final, devo ter lido esse texto mesmo em algum outro momento e mesmo assim, ele ainda continua mexendo comigo e ainda continua tão verdadeiro, tão atual...
ResponderExcluirA gente se acostuma com tudo tão facilmente, né?
Mesmo sabendo que não deveria...
Beijinhos,
Lica
Oie tudo bem? Esse texto é maravilhoso mesmo. Eu li apenas um livro da autora, além desse texto, e adorei vale muito a pena. A escrita dela é uma delícia!
ResponderExcluirQue texto maravilhoso!!! Nos faz repensar em porque aceitamos tudo isso, mesmo que praticamente estejam gritando serem coisas ruins.
ResponderExcluirO que faz com que a gente perca tempo demais vivendo o que não deveria
Beijos
Olá...que texto incrível! Adorei a forma como a autora expressa nossas ações...nos acostumamos a coisas ridículas que são impostas pela sociedades e não percebemos o quanto isso é ruim.
ResponderExcluirAbraços
Um dos textos mais poderosos que li nos últimos meses. Vou compartilhar. Adorei a forma como ela mostra a crueldade do mundo, sem deixar claro, mas com um tom bem crítico.
ResponderExcluirBom dia,
ResponderExcluirSó tenho uma coisa a dizer, simplesmente demais, que texto é esse....show, ótima dica...compartilhando agora!!!
http://devoradordeletras.blogspot.com.br/
Texto maravilhoso que reflete a nossa acomodação e conformismo com as situações e condições de vida.gostaria de compartilhar,seria possível? a
ResponderExcluirTexto maravilhoso, nos faz refletir sobre nossas atitudes perante a vida :acomodação e conformismo com as situações e cotidiano.
ResponderExcluirMagnífico!
ResponderExcluirNo original: "E a saber que cada vez pagar(Á) mais." O texto acima publicado diz: "E a saber que cada vez pagar mais." O texto é lindo, merece essa correção.
ResponderExcluirNo original: "E a saber que cada vez pagar(Á) mais." O texto acima publicado diz: "E a saber que cada vez pagar mais." O texto é lindo, merece essa correção.
ResponderExcluirCorreção feito por fã.
Excluir"E vai descobrir com o tempo, que sempre pagará maís e mais caro"
Trecho do texto incrivel, me fez reflexionar um pouco.
ResponderExcluirResignação, somos forçados a aceitar pacificamente essa vida insana e desnaturada desde de criança, sem sequer aprender a questiona-la, só se aprende quando já esta na metade da vida adulta, onde ja se passou por tudo e mais um pouco.
Isso nunca vai acabar, guerras fazem parte da sociedade só podemos minimizalas. A vida social é um fardo de vidas passadas.